Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: Marguerite, 2017 – de Marianne Farley.


[contém spoilers, link para o filme no final do post (legendas em inglês)]

Cartaz do curta-metragem “Marguerite”

Este é o segundo curta-metragem dirigido por Marianne Farley (o primeiro: “Saccage” fora gravado em 2015). Uma produção do Canadá originalmente falado em francês. Em 2019 foi indicado ao Oscar de melhor curta-metragem, mas o curta que levou a premiação foi “Skin”, de Jaime Ray Newman e Guy Nattiv. “Marguerite” nos traz a história de Marguerite (Béatrice Picard), uma senhora idosa que parece morar sozinha em sua casa, e recebe a visita diária da cuidadora Rachel (Sandrine Bisson).

A cena inicial é íntima. Rachel está lavando Marguerite. Passa água em suas costas, em seus braços. Ouvimos de perto a água passando pela costas de Marguerite e caindo de volta na banheira. A relação de cuidado que Rachel tem com Marguerite é intensa, está sempre com o olhar dirigido a ela, pergunta sobre sua saúde, passa creme, atende um ou outro pedido. E nesse processo de interação a câmera acompanha de perto Marguerite. E, com ela, percebemos os pequenos prazeres que extrai da rotina de cuidados: o toque de Rachel no banho; o ensaboar dos cabelos; as mãos que deslizam sobre a perna na intenção de hidratar a pele.

A relação de cuidado vem atrelada ao toque, à atenção dispensada e os planos, sempre próximos da pele, dos dedos, das pequenas reações do rosto de Marguerite, nos deixam ainda mais próximos das duas. Quando Rachel vai embora, Marguerite inicia um período de espera, sozinha na mesa tomando seu chá.

De repente o telefone de Rachel toca e atravessa um desses momentos de toque sutil e atencioso. Marguerite fica sabendo que Rachel tem uma namorada. A pergunta que a senhora faz: “Qual o nome dela?”. A informação a leva direto ao álbum de fotos de sua juventude, onde seus dedos tocam a face, o corpo e o nome de outra mulher: Cécile.

Agora, durante sua rotina, Marguerite fica apreensiva e em numa das despedidas rotineiras, de um impulso, pergunta: “Como é amar outra mulher?”. Rachel é pega desprevinida, mas responde: “É… é lindo”. Enquanto Marguerite passa a repensar sua juventude e as questões de sexualidade que envolviam ela e Cécile, Rachel se aproxima ainda mais de Marguerite, talvez num movimento de entender a diferença geracional entre elas, as dificuldades que enfrentara na lida com seus sentimentos…

Ao final, a relação entre as duas personagens se estreita, numa sensação de empatia e sororidade. O tempo do filme é calmo, as imagens de pele, mãos, toques e o som dos detalhes bem próximos, como se estivéssemos no mesmo ambiente de Marguerite, nos faz emocionar quando ela diz: “Eu também amei outra mulher… Nunca consegui contar a ela”.

Assista ao curta aqui:


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Peça: “Vagaluz”, direção de Antonio Januzelli


Vagaluz é o que encontramos quando nos sentamos para assistir a peça. Os atores estão sentados na penumbra. A luz, que rebate na parede de tijolos do espaço cênico do Sesc Pompéia, mal ilumina seus corpos, como quando temos algo na ponta da língua, mas não conseguimos lembrar da palavra exata. Aquela palavra, que mal iluminada em nossa imagem mental, não pode ser traduzida por nós em linguagem.

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Aos poucos Edgar Campos e Lídia Engelberg caminham até a luz e começam a nos contar pequenos fragmentos de histórias. Os olhos muitas vezes vidrados, um corpo que se esforça pela fala, por pequenos gemidos ou gritos, que se retorce, se aperta ou se preenche de euforia num momento de lucidez.

A sensação é de estar dentro da mente. Observando lapsos de memória, de lembranças, que as vezes se interconectam, às vezes estão misturadas à recriações, à repetições. O que permanece em nós das histórias que vivemos?

Entre os fragmentos que ouvimos é muito fácil se emocionar. As semelhanças que encontramos nessas histórias com nossas próprias histórias. Ou o medo de perder as nossas histórias com o tempo, de que o esforço que façamos para lembrar do que vivemos não nos traga mais do que algumas imagens mal iluminadas, alguns sons desconexos, uma aleatória combinação de histórias que não se encaixam.

As trocas de luz indicam as mudanças de espaço propostas pelos atores e bem devagar, quase sem perceber, estamos imaginando os locais de nossas infâncias no palco, uma tia nossa andando pelo corredor de casa, nossa mãe gritando da cozinha, alguma situação familiar mal resolvida que trazemos ainda conosco. Não há cenário, mas pelo cunho pessoal e intimista da interpretação, que nos remete às conversas das reuniões familiares, aliada ao trabalho de luz, cada espectador vai criando seus próprios cenários e sua identificação com as histórias.

Não há exatamente uma mímese da condição de alguém com alzheimer. Às vezes o corpo e a voz indicam essa condição, mas na maioria das vezes é a junção dos fragmentos das histórias, um algo sem sentido aparente, um olhar perdido ou confuso, uma explicação fora de contexto, ou, ainda mais forte, um olhar penetrante que te observa. Fixa em você a falta do que dizer junto à vontade de dizer algo. E causa desconforto em nos fazer entender que essa é a condição da memória. A memória é efêmera, muda com o tempo, o que não muda é a vontade de lembrar.

Os figurinos bastante simples remetem a uma conversa tranquila, em família, em casa, numa casa de repouso… O espetáculo todo tem essa atmosfera despretensiosa. Sem “grandes” recursos, nos aproximamos e, quando percebemos, estamos envolvidos pelo olhar penetrante da Lídia, ou pela euforia infantil do Edgar. Eles nos conduzem delicadamente por uma mente vagamente iluminada, onde, de sopetão, acontece um clarão, e é possível ver rapidamente uma lembrança. Uma lembrança sem final, que não se vê por inteira, e de novo estamos na penumbra.

Memória. Penumbra. Humana.

Para mais informações sobre o diretor:
https://jornal.usp.br/cultura/peca-de-teatro-reflete-sobre-a-autopercepcao-do-ator-e-do-publico/