Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: “Monster” de Kore-eda Hirokazu, 2023


Estrelas 🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟 10/10

Uma amiga recomendou este filme enquanto conversávamos sobre o Oscar, ele havia sido premiado com o Queer Palm em Cannes, e como melhor roteiro também no Festival de Cannes. Fui assistir no Cine Itaú-Unibanco, ali na Rua Augusta em São Paulo. Não conhecia a Sala 05, que é uma sala muito aconchegante (apesar das cadeiras todas rasgadas) com apenas 15 lugares. Quase uma sessão privada. Entrei na sessão sem ter lido nada sobre o filme.

O rapaz que assistiu a sessão ao meu lado soltou no fim do filme: “Que pedrada”. Durante o filme eu ouvi ele chorando. A sensação que o filme me despertou ainda não tem um nome em mim, mas talvez seja um misto de surpresa e espanto.

O título do filme induz um entendimento precipitado: Monstro, parece que como num jogo precisaremos encontrar o Monstro, aquele(a) responsável por tudo o que vai acontecer de ruim, ou que diante de suas escolhas e ações poderia ser nomeado como Monstro. O cartaz do filme segue a mesma estratégia, duas crianças no centro e abaixo delas, em recortes, outros três personagens. Qual deles é o monstro?

O filme inicia, acompanhamos a relação entre uma mãe Saori (Sakura Ândo) e seu filho Minato (Soya Kurokawa) levemente desconfortável no início, um pai já falecido, alguns comportamentos estranhos do filho: chega sem um dos tênis da escola, corta os cabelos, a orelha machucada… O roteiro e a direção nos induzem através de imagens escuras, diálogos trancados, a uma atmosfera de medo próxima de um filme de suspense, cercado de mistérios. Aqui o primeiro monstro apresentado talvez fosse a Mãe? Uma mãe ausente que tenta cumprir as várias lacunas e funções de arcar com a casa, o trabalho e o filho sozinha, mas não consegue?

Mas outro monstro nos é apresentado como mais verdadeiro: o professor de Minato (Hori). Sua conduta violenta verbal e fisicamente aos poucos vai sendo apresentada através das falas de terceiros, o jornal publica a manchete: Professor diz que aluno tem cérebro de porco. A direção da escola reluta em demiti-lo. A atuação da mãe numa postura exageradamente suplicante, com seu corpo quase ajoelhado, buscando o olhar dos professores e da diretora nos faz acreditar no drama exposto por ela. O trabalho do corpo da atriz junto aos enquadramentos mais altos apontados para baixo (Plongée), como se ela estivesse sendo massacrada pela escola, nos ajuda a crer nela.

De maneira inesperada, o ponto de vista muda, e acompanhamos agora o professor. Aos poucos nos surpreendemos ao descobrir que ele não era culpado de nada, a única agressão foi um movimento não intencional. Quem o obriga a confessar é a diretora da escola, que inclusive parece ter atropelado o próprio neto e pedido ao marido para assumir a culpa indo preso, para poder continuar trabalhando como diretora. Ela é o monstro agora. Numa nova virada, começamos a acompanhar as crianças, descobrimos que o incêndio mostrado no início do filme, e sempre retomada durante cada virada da trama (o que acaba virando uma linguagem no filme), foi provocado por uma delas: Yori, um menino que ao saber que seu pai frequentava aquele prédio destinado a diversões adultas, põe fogo no andar inteiro. Ele então seria o monstro?

O filme nos provoca a questionar quem é o monstro? E faz isso de várias maneiras, seja brincando com o gênero do suspense, seja através das certezas apontadas através dos diálogos e de acesso parcial a cada trecho da história, ou até como um leitmotiv (som que ao se repetir de maneira insistente marca um personagem ou situação) em que Yori e Minago cantam: “Quem é o monstro?”. Mas ao mesmo tempo a fotografia e a trilha sonora (do apaixonante Ryuichi Sakamoto) delicadas, vão nos conduzindo de maneira sutil para um lugar mais denso.

Yori é um menino muito feminino, seu pai diz que ele é doente e tem o cérebro de porco ao invés de um cérebro humano (e não o professor Hora para Minago), e diariamente sofre buyilling de todos os colegas. Minato começa uma amizade com ele, mas com muito receio de descobrirem e ter a sua masculinidade questionada. E acaba se apaixonando, mas não faz ideia de como contar para sua mãe, que num momento no início do filme diz algo como: Prometi para o seu pai que cuidarei de você até você ter uma família comum, com todas as outras. Algo que Minato começa a entender que nunca terá por conta do que sente por Yori, e se joga do carro.

Num túnel, Minago e Yori cantam: “Quem é o monstro?”. A cada troca de perspectiva os personagens são humanizados e ao mesmo tempo questionados. O trabalho da direção, da montagem e do roteiro nos entrega pistas falsas para a resposta dessa questão durante metade do filme. Até que somos deparados com tamanha violência praticada contra Yori, até por quem diz gostar dele; da violência perpetrada contra o professor, seja pela mãe, pela imprensa ou pela direção da escola; pelo medo da violência e do julgamento que a diretora tem diante do atropelamento de seu próprio neto… Uma frase ressoa pela boca da diretora “Não importa o que realmente aconteceu…” (comentando a denúncia do professor). Finalmente percebemos que o Monstro não existe.

Não existe de maneira personificada, o Monstro talvez seja uma premissa cultural machista estrutural, que participa de nós desde o nosso nascimento. Ou talvez seja também o Medo. O medo do que os outros vão pensar, medo da violência, medo de não conseguir ser quem se é. Erros, mal entendidos, violência, julgamento. O verdadeiro monstro é abstrato em certo sentido. Ninguém é totalmente bom ou totalmente mal. Mas o que é possível relevar e o que é passível de punição? Será que eu ou você faríamos algo até pior na mesma situação?

Em meio a tanta violência, a relação de Minato e Yori é tão delicada, talvez até permissiva da parte de Yori, ao mesmo tempo Monstro ao mesmo tempo Amor, dúvidas, culpa, duas crianças tentando entender o que acontece com elas. O caminho duro de entender a própria sexualidade, de querer estar junto, mas questionar o que é certo ou o que é possível.

Durante todo o filme um som de trombone e de trompa aparece de maneira sutil em algumas cenas na escola. Na cena final, uma conversa sincera entre a diretora da escola e Minato, ambos mentiram sobre suas verdades no mundo exterior. A resposta que ela apresenta para o absurdo que se vive é o sopro, ou a música. Ela pede para que ele sopre o trombone como uma forma de exasperar os sentimentos mais difíceis. Os dois fazem sons aleatórios… Um filme ternamente violento.


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Filme: Depois do Fervo, 2018 de Matheus Faisting


Depois do Fervo é um documentário dirigido por Matheus Faisting em 2018. Durante os 40 minutos do filme vamos conhecer um ponto de vista diferente do mainstream, sobre a cidade de Florianópolis. Vista como uma das cidades mais gay-friendly do país, o documentário exibe um contraponto necessário: 6 depoimentos de lgbts que sofreram violência (homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia) na cidade e que não se sentem seguros nela.

Documentário de Matheus Faisting

As cenas iniciais, levemente irônicas, apresentam a cidade Florianópolis, com imagens paradisíacas das praias, pessoas caminhando tranquilamente pela cidade ou nas formações rochosas de encontro ao mar. As belas imagens são acompanhadas do Concerto nº4 de Bach in G Major BWV 1049. Logo o cenário muda para o fervo do carnaval e um remix de “Não fui eu, foi o carnaval”, da cantora Lila, nos faz adentrar às várias manifestações de pessoas lgbts durante essa celebração popular.

Mais uma vez é a mudança da trilha que indica a mudança de humor do documentário. Com um som misterioso e repleto de eco, vemos uma pessoa de lado e de rosto virado contra a câmera, e surge então o nome do documentário: Depois do Fervo. É o momento em que começam os depoimentos sobre uma Florianópolis não tão divulgada. Num travelling de uma cena noturna na rua, uma trilha abafada de balada techno, e o depoimento sobre os perigos que a cidade apresenta. Aqui a sensação de insegurança se estabelece.

Um dos argumentos centrais do documentário, é que a cidade segura e gay-friendly só existe aos turistas lgbts, e àqueles turistas que tem dinheiro para se hospedar e se movimentar pela cidade com segurança. Aos moradores lgbts, a cidade reserva a violência: mais de 70 casos de violência de gênero por mês. Uma dos personagens sociais procurando o rg antes de sair de casa, ‘brinca’: “Se a gente for alvejado na rua, pelo menos já tem uma identificação”.

Pink Money, marketing direcionado e apelo comercial são as diretrizes que parecem apontar para uma cidade que está mais preocupada com a sua imagem turística do que com a população lgbt que vive ali. Os relatos de violência vão desde violência em público, verbal, física e até profissional, quando uma das depoentes relata o atendimento de uma psicóloga que coloca como problema central de sua depressão a própria sexualidade.

A montagem se destaca principalmente nos momentos em que temos imagens de Drags se apresentando. Os cortes se encaixam quase que em continuidade, mesmo em performances diferentes. Também entre alguns depoimentos, cortes que poderiam ser didáticos, ilustrando os depoimentos, ganham um sentido mais profundo na construção narrativa. Ás vezes os olhares das pessoas nessas imagens nos faz questionar: “O que está acontecendo?”, ou “Como alguém consegue defender a violência que agride pessoas, como eu e você, que estão se amando?”. Ao invés de afirmar algo, nesses momentos parece que respiramos pra nos questionar.

À metade do filme ouvimos: “Que Gay-friendly que é?”. E a impressão que tivemos no início de cidade maravilhosa é contraposta a imagens de pessoas caminhando, mas agora essas imagens contam com um efeito, todos caminham para trás. “Será que o pipoqueiro ali da esquina é lgbt-friendly?”.

Entre os depoimentos uma performance. Um corpo de rosto desfigurado pelo plástico que o prende, seu gênero indefinido. Na trilha, sons que atravessam o espaço como num tunel, repleto de eco. Desperta um tipo de incômodo ver aquele corpo dilacerado pelo plástico film, mas também envolve algum tipo de atração pela língua que se movimenta e pelo olhar penetrante. É um momento bastante sensorial, ficcional e que se comunica com o restante do documentário de maneira interessante. Produz sentido sensível diante dos depoimentos.

Ao longo do documentário fica claro que a relação de Florianópolis com a comunidade lgbt é bastante problemática. A evidência, quem nos revela, é uma das depoentes: “Se forem até lá a galheta, por exemplo, tem uma pedra que tá escrito morte aos gays… Então, seria, talvez, uma mensagem de boas vindas aos turistas?”

“E aí eu sempre vou pensar numa coisa, que desde que isso aconteceu… que eles não bateram em mim, não bateram no Vitor, eles bateram nas nossas representações… O que eu represento? Eu represento um homem gay pra eles… quando eles me ameaçaram de morte, eles não estavam fazendo isso só comigo, eles estavam fazendo isso com todos os lgbts que tem aqui”. Como aponta a filósofa Judith Butler, recuperando o conceito de cena de reconhecimento proposta por Hegel, quando entramos em contato com outra pessoa, outro corpo, há um momento de reconhecimento mútuo. Nesse momento, se identifico o outro como igual dou a ele status de humanidade. Mas se o identifico como um corpo diferente, ou que performa algo que não consigo identificar como semelhante a mim, retiro dele sua humanidade.

E num corpo que não tem humanidade é fácil produzir um tipo de ética da violência para justificar meus atos violentos, como por exemplo: Você vai apanhar porque vocês não deviam se beijar em público, ou como em outro depoimento sobre a namorada de uma das depoentes: “Você quer ser um cara? Então vai apanhar como um!”. A violência de gênero só se torna possível quando você deixa de enxergar os nossos corpos, porque eu que escrevo sou uma pessoa lgbt, como corpos de seres tão humanos quanto você.

Mas o filme não se rende a apenas mostrar a violência e questionar as políticas públicas da cidade. No final o chamado é claro: “Não se esconda”. Ao som de “Não recomendado”, na voz de Caio Prado, vemos os rostos de todos os depoentes. Resistência e sentimento de comunidade dão o tom ao final do filme.


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Filme: Marguerite, 2017 – de Marianne Farley.


[contém spoilers, link para o filme no final do post (legendas em inglês)]

Cartaz do curta-metragem “Marguerite”

Este é o segundo curta-metragem dirigido por Marianne Farley (o primeiro: “Saccage” fora gravado em 2015). Uma produção do Canadá originalmente falado em francês. Em 2019 foi indicado ao Oscar de melhor curta-metragem, mas o curta que levou a premiação foi “Skin”, de Jaime Ray Newman e Guy Nattiv. “Marguerite” nos traz a história de Marguerite (Béatrice Picard), uma senhora idosa que parece morar sozinha em sua casa, e recebe a visita diária da cuidadora Rachel (Sandrine Bisson).

A cena inicial é íntima. Rachel está lavando Marguerite. Passa água em suas costas, em seus braços. Ouvimos de perto a água passando pela costas de Marguerite e caindo de volta na banheira. A relação de cuidado que Rachel tem com Marguerite é intensa, está sempre com o olhar dirigido a ela, pergunta sobre sua saúde, passa creme, atende um ou outro pedido. E nesse processo de interação a câmera acompanha de perto Marguerite. E, com ela, percebemos os pequenos prazeres que extrai da rotina de cuidados: o toque de Rachel no banho; o ensaboar dos cabelos; as mãos que deslizam sobre a perna na intenção de hidratar a pele.

A relação de cuidado vem atrelada ao toque, à atenção dispensada e os planos, sempre próximos da pele, dos dedos, das pequenas reações do rosto de Marguerite, nos deixam ainda mais próximos das duas. Quando Rachel vai embora, Marguerite inicia um período de espera, sozinha na mesa tomando seu chá.

De repente o telefone de Rachel toca e atravessa um desses momentos de toque sutil e atencioso. Marguerite fica sabendo que Rachel tem uma namorada. A pergunta que a senhora faz: “Qual o nome dela?”. A informação a leva direto ao álbum de fotos de sua juventude, onde seus dedos tocam a face, o corpo e o nome de outra mulher: Cécile.

Agora, durante sua rotina, Marguerite fica apreensiva e em numa das despedidas rotineiras, de um impulso, pergunta: “Como é amar outra mulher?”. Rachel é pega desprevinida, mas responde: “É… é lindo”. Enquanto Marguerite passa a repensar sua juventude e as questões de sexualidade que envolviam ela e Cécile, Rachel se aproxima ainda mais de Marguerite, talvez num movimento de entender a diferença geracional entre elas, as dificuldades que enfrentara na lida com seus sentimentos…

Ao final, a relação entre as duas personagens se estreita, numa sensação de empatia e sororidade. O tempo do filme é calmo, as imagens de pele, mãos, toques e o som dos detalhes bem próximos, como se estivéssemos no mesmo ambiente de Marguerite, nos faz emocionar quando ela diz: “Eu também amei outra mulher… Nunca consegui contar a ela”.

Assista ao curta aqui: