Estrelas 🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟 10/10
Uma amiga recomendou este filme enquanto conversávamos sobre o Oscar, ele havia sido premiado com o Queer Palm em Cannes, e como melhor roteiro também no Festival de Cannes. Fui assistir no Cine Itaú-Unibanco, ali na Rua Augusta em São Paulo. Não conhecia a Sala 05, que é uma sala muito aconchegante (apesar das cadeiras todas rasgadas) com apenas 15 lugares. Quase uma sessão privada. Entrei na sessão sem ter lido nada sobre o filme.
O rapaz que assistiu a sessão ao meu lado soltou no fim do filme: “Que pedrada”. Durante o filme eu ouvi ele chorando. A sensação que o filme me despertou ainda não tem um nome em mim, mas talvez seja um misto de surpresa e espanto.
O título do filme induz um entendimento precipitado: Monstro, parece que como num jogo precisaremos encontrar o Monstro, aquele(a) responsável por tudo o que vai acontecer de ruim, ou que diante de suas escolhas e ações poderia ser nomeado como Monstro. O cartaz do filme segue a mesma estratégia, duas crianças no centro e abaixo delas, em recortes, outros três personagens. Qual deles é o monstro?
O filme inicia, acompanhamos a relação entre uma mãe Saori (Sakura Ândo) e seu filho Minato (Soya Kurokawa) levemente desconfortável no início, um pai já falecido, alguns comportamentos estranhos do filho: chega sem um dos tênis da escola, corta os cabelos, a orelha machucada… O roteiro e a direção nos induzem através de imagens escuras, diálogos trancados, a uma atmosfera de medo próxima de um filme de suspense, cercado de mistérios. Aqui o primeiro monstro apresentado talvez fosse a Mãe? Uma mãe ausente que tenta cumprir as várias lacunas e funções de arcar com a casa, o trabalho e o filho sozinha, mas não consegue?
Mas outro monstro nos é apresentado como mais verdadeiro: o professor de Minato (Hori). Sua conduta violenta verbal e fisicamente aos poucos vai sendo apresentada através das falas de terceiros, o jornal publica a manchete: Professor diz que aluno tem cérebro de porco. A direção da escola reluta em demiti-lo. A atuação da mãe numa postura exageradamente suplicante, com seu corpo quase ajoelhado, buscando o olhar dos professores e da diretora nos faz acreditar no drama exposto por ela. O trabalho do corpo da atriz junto aos enquadramentos mais altos apontados para baixo (Plongée), como se ela estivesse sendo massacrada pela escola, nos ajuda a crer nela.
De maneira inesperada, o ponto de vista muda, e acompanhamos agora o professor. Aos poucos nos surpreendemos ao descobrir que ele não era culpado de nada, a única agressão foi um movimento não intencional. Quem o obriga a confessar é a diretora da escola, que inclusive parece ter atropelado o próprio neto e pedido ao marido para assumir a culpa indo preso, para poder continuar trabalhando como diretora. Ela é o monstro agora. Numa nova virada, começamos a acompanhar as crianças, descobrimos que o incêndio mostrado no início do filme, e sempre retomada durante cada virada da trama (o que acaba virando uma linguagem no filme), foi provocado por uma delas: Yori, um menino que ao saber que seu pai frequentava aquele prédio destinado a diversões adultas, põe fogo no andar inteiro. Ele então seria o monstro?
O filme nos provoca a questionar quem é o monstro? E faz isso de várias maneiras, seja brincando com o gênero do suspense, seja através das certezas apontadas através dos diálogos e de acesso parcial a cada trecho da história, ou até como um leitmotiv (som que ao se repetir de maneira insistente marca um personagem ou situação) em que Yori e Minago cantam: “Quem é o monstro?”. Mas ao mesmo tempo a fotografia e a trilha sonora (do apaixonante Ryuichi Sakamoto) delicadas, vão nos conduzindo de maneira sutil para um lugar mais denso.
Yori é um menino muito feminino, seu pai diz que ele é doente e tem o cérebro de porco ao invés de um cérebro humano (e não o professor Hora para Minago), e diariamente sofre buyilling de todos os colegas. Minato começa uma amizade com ele, mas com muito receio de descobrirem e ter a sua masculinidade questionada. E acaba se apaixonando, mas não faz ideia de como contar para sua mãe, que num momento no início do filme diz algo como: Prometi para o seu pai que cuidarei de você até você ter uma família comum, com todas as outras. Algo que Minato começa a entender que nunca terá por conta do que sente por Yori, e se joga do carro.
Num túnel, Minago e Yori cantam: “Quem é o monstro?”. A cada troca de perspectiva os personagens são humanizados e ao mesmo tempo questionados. O trabalho da direção, da montagem e do roteiro nos entrega pistas falsas para a resposta dessa questão durante metade do filme. Até que somos deparados com tamanha violência praticada contra Yori, até por quem diz gostar dele; da violência perpetrada contra o professor, seja pela mãe, pela imprensa ou pela direção da escola; pelo medo da violência e do julgamento que a diretora tem diante do atropelamento de seu próprio neto… Uma frase ressoa pela boca da diretora “Não importa o que realmente aconteceu…” (comentando a denúncia do professor). Finalmente percebemos que o Monstro não existe.
Não existe de maneira personificada, o Monstro talvez seja uma premissa cultural machista estrutural, que participa de nós desde o nosso nascimento. Ou talvez seja também o Medo. O medo do que os outros vão pensar, medo da violência, medo de não conseguir ser quem se é. Erros, mal entendidos, violência, julgamento. O verdadeiro monstro é abstrato em certo sentido. Ninguém é totalmente bom ou totalmente mal. Mas o que é possível relevar e o que é passível de punição? Será que eu ou você faríamos algo até pior na mesma situação?
Em meio a tanta violência, a relação de Minato e Yori é tão delicada, talvez até permissiva da parte de Yori, ao mesmo tempo Monstro ao mesmo tempo Amor, dúvidas, culpa, duas crianças tentando entender o que acontece com elas. O caminho duro de entender a própria sexualidade, de querer estar junto, mas questionar o que é certo ou o que é possível.
Durante todo o filme um som de trombone e de trompa aparece de maneira sutil em algumas cenas na escola. Na cena final, uma conversa sincera entre a diretora da escola e Minato, ambos mentiram sobre suas verdades no mundo exterior. A resposta que ela apresenta para o absurdo que se vive é o sopro, ou a música. Ela pede para que ele sopre o trombone como uma forma de exasperar os sentimentos mais difíceis. Os dois fazem sons aleatórios… Um filme ternamente violento.