Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: “Vidas Passadas” de Celine Song – 2023


Estrelas 🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟🌟 10/10

O filme “Past Lives” inicia de maneira bastante enigmática. Na imagem vemos três pessoas conversando num bar, no áudio ouvimos dois observadores dessa imagem (como nós mesmos espectadores do filme), se questionando sobre quais as relações que essas pessoas têm entre si. Os dois asiáticos são um casal? O cara branco é um guia turístico? São familiares? A imagem se aproxima num zoom bastante discreto, até que ao final do plano, a personagem principal Nora nos olha de maneira penetrante, e parece querer nos dizer algo.

Detalhe do rosto da personagem Nora, na cena inicial do filme Past Lives.
Detalhe do rosto da personagem Nora, na cena inicial do filme Past Lives.

Num corte brusco viajamos para 24 anos atrás na história dessas pessoas. E essa já é uma primeira camada sobre o título do filme. Quantas vidas vivemos ao longo de nossa própria vida? Os sentimentos que tivemos quando criança ou adolescente se mantém durante a nossa vida? Ou se transformam? Ou adormecem? De tal modo que o que vivemos parece fazer parte de uma vida passada? Ou ainda: Precisamos deixar alguns sentimentos que temos por algumas pessoas para trás para poder seguir adiante nossas próprias vidas? Viver é “abandonar” (num sentido de deixar ir, menos que abandonar) sentimentos para que novas sensações possam surgir?

Acompanhamos dois jovens “Na Yung” (que mudará de nome para Nora quando imigra para outro país) e Hae Sung em sua relação de amizade e amor juvenil. As personagens femininas são bastante fortes desde o início do filme. A mãe de Na Yung numa conversa bastante sincera com a filha planeja um último encontro entre ela e Hae Sung, já que ela gostava dele. Como uma forma de despedida e ao mesmo tempo de validação do sentimento dela. No parque, nesse último encontro, uma escultura de forma hominal que abre a boca periodicamente, como se algo fosse necessário ser dito, mas que não havia como por conta da separação iminente de ambos. A mãe de Hae Sung pergunta: “Porque vocês deixariam tudo isso para trás?” sobre a imigração e a carreira dos pais de Na Yung, ao que a mãe dela responde: “Se você deixa algo para trás, ganha algo também”.

Na yung e Hae Sung seguirão trajetórias diferentes, e a própria imagem já nos informa isso.

A fotografia do filme e a trilha sonora são muito delicadas, em nenhum momento indicam movimentos bruscos ou violentos, mesmo quando as questões que as personagens atravessam são complexas. 12 anos se passam, Nora por curiosidade procura Hae Sung nas redes sociais (ela já vinha pesquisando outras pessoas de sua infância) e descobre que Hae já havia procurado ela através de um comentário numa página de um filme do seu pai. E lentamente os dois iniciam uma retomada dessa relação / sentimento através das redes sociais e programas virtuais de chamadas, como o Skype.

Acompanhar a história dos dois de maneira tão calma e delicada, vai fazendo com que nós que estamos assistindo também nos conectemos com as nossas histórias de amores que não vingaram e de pessoas que veem e voltam em nossas vidas. Num primeiro sinal de amadurecimento, Na Yung é questionada por seu amigo “crush” de infância se ela continua chorando muito. E ela diz que chorava muito quando imigrou, mas que aos poucos percebeu que ninguém ligava e isso a fez parar. Talvez a relação com Sae Hung seja uma relação ainda infantil, ele parece estar pronto para acolhê-la em tudo como fazia quando eram crianças, mas talvez essa mulher, Nora, já não precise mais disso, por mais que isso pareça gostoso e bom pra ela.

Os problemas de conexão com a internet ficam mais evidentes, e também versam sobre a dificuldade de conexão entre eles. Ela tem uma vida estabelecida em Nova York e segue prestando editais de residência artística, ele vai estudar mandarim para ajudar em sua profissão. A pesar do carinho, os obstáculos para que eles se conectem começam a pesar nessa relação e é Nora quem percebe isso. Ela decide por um ponto final, mesmo que temporário, na relação deles, para que ela pudesse seguir a vida dela, como fez 12 anos antes. Assim que ela “termina” com ele, o sol começa a raiar pela janela, indicando um novo começo. De maneira muito sutil, a diretora vai nos conduzindo através das metáforas visuais.

Numa viagem, Nora conhece seu parceiro de vida: Arthur. A trilha indica que algo está acontecendo, ouvimos um tilintar de sons daqueles penduricalhos que balançam com o vento. E aqui Nora apresenta uma das teses fundamentais do filme, o conceito coreano de In-Yun, que significa: o destino dentro das relações pessoais. Ela diz que as pessoas que se casam, por exemplo, o fazem porque tem pelo menos 8.000 camadas, 8.000 vidas que veem se encontrando. Mais 12 anos se passam. Hae Sung viaja para Nova York e fica claro que é apenas para vê-la. Chove o tempo inteiro, um clima introspectivo e melancólico na cidade. E como no primeiro encontro, eles combinam de se ver num Parque.

Ao se verem, um corte brusco traz lembranças da infância, deles brincando no parque em Seul. As lembranças infantis e os sentimentos de quando eram crianças afloram em largos sorrisos e abraços fraternos. No trem, as mãos próximas, o olhar penetrante entre eles, mesmo o espaço e o tempo se movendo (por conta do trem), a relação dos dois firme. Ao fundo um carrossel, as lembranças da infância em grande movimento, em primeiro plano os dois se entreolham e conversam de maneira mais sincera. O filme nos mostra em imagem o que está acontecendo dentro deles. Nora indica mais uma vez a maturidade que conquistou seguindo sua própria vida: “Nós não somos mais bebês”.

Metáfora visual, onde a infância é representada por um Carrossel ao fundo. As lembranças giram num ambiente controlado e imutável.

Num terceiro momento do filme, ficamos mais próximos da relação de casal entre Nora e Arthur. Arthur se mostra um homem sensível e inseguro diante de tudo que está acontecendo e dos encontros entre Nora e Sae Hung. Nora se abre com seu marido de maneira muito verdadeira: “É bem intenso, mas não acho que seja atração. Acho que apenas senti falta dele”. Antes de dormirem, Arthur comenta sobre como ele sente que poderia estar atrapalhando a história dos dois, mesmo que de maneira furtiva ou brincalhona, brincando inclusive com a profissão deles que é justamente criar histórias. Nora demonstra de muitas maneiras sua maturidade e pergunta: “Você está me perguntando se você, Arthur Zaturansky, é a resposta para o sonho imigrante da minha família? Uau!” E Arthur revela que ela sonha em Coreano, e que ele percebe sempre que há uma parte dela inacessível, impossível de penetrar, esse lugar do sonho. Ela sonha em outra língua. Mas será que cada um de nós não tem os seus próprios mundos impenetráveis? Sonhando ou não em outra língua?

Hae Sung segue cuidando de Nora, faz um sanduíche pra ela, na imagem as águas debaixo da embracação que estão se movimentam de maneira forte. Os últimos 25 minutos do filme são o encontro desse trisal, em diversos momentos desconfortávelmente delicados. Alguns silêncios, alguns gestos de respeito mútuo entre Arthur e Sae, a postura carinhosa e sem nenhuma malícia de Nora, vão fazendo os sentimentos que nutrimos pelas personagens do filme, e também de nossa vida pessoal, ficarem cada vez mais fortes e mais complexos, como se não houvesse uma saída fácil e nem a possibilidade de exercer qualquer tipo de violência emocional ou psicológica. Um desconforto expresso de maneira tão delicada e carinhosa que emociona. Numa frase: “Eu não sabia que gostar do seu marido ia doer tanto.”, diz Sae Hung, na mesma cena que o filme se inicia, os três no bar. Mas agora sabemos quais as relações interpessoais e o desconforto que existe ali. Num diálogo dos mais duros e delicados do filme eles conversam:

  • “Mas a verdade que aprendi aqui é: Você teve que ir embora porque você é você. E a razão pela qual eu gostei de você é que você é você. E quem você é, é alguém que vai embora.”
  • “A Na yung que você lembra não existe aqui. Mas aquela garotinha existiu. Ela não está sentada aqui na sua frente, mas isso não quer dizer que ela não é real. 20 anos atrás eu a deixei para trás com você.”
  • “Eu sei. Para o Arthur você é uma pessoa que fica.”
Detalhe da despedida dos dois, num plano sem perspectiva onde são confrontados.

Ao fim, emparedados. Um plano frontal, com uma porta fechada que simula uma parede. Não há nenhuma perspectiva na imagem. Eles estão colocados contra a parede. Nenhum dos dois se precipita. O vento continua batendo na saia de Nora. O Uber chega, ele grita pra ela, como gritou na despedida da infância, os dois se separam. A imagem corre num nascer do sol por uma ponte.

Fazia tempo que não assistia um filme tão lindo, tão delicado e tão desconfortável. A trilha e a fotografia acompanham a sensibilidade do roteiro e da direção, ambas de Celine Song. O filme acaba sendo um tratado sobre as vidas passadas que temos dentro de nossas próprias vidas, e como algumas questões não tem solução, pra sempre ficarão dentro de nós como coisas irresolvidas, como um sentimento latente de algo que poderia ter sido e não foi. Destaque para a atriz Greta Lee, que mantém um ar enigmático e sincero durante o filme, com certeza nos emocionamos por conta dela.


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Filme: Fauve, de Jeremy Comte – 2018


A primeira imagem do curta-metragem Fauve já nos confronta com o nível de tensão que vai se desenrolar no enredo do filme. Dentro do vagão de um trem, o chão do corredor interno está repleto de poeira e do que parece ser vidro estilhaçado. Também há moscas zunindo dentro do corredor. O enquadramento está propositadamente torto. A câmera se aproxima lentamente da porta do corredor. O trem está abandonado. Um som surdo de soco, e de tentativas de abrir uma maçaneta, são acompanhados de um pedido de socorro. Essa tensão vai percorrer toda a narrativa do curta. Tyler (Félix Grenier) havia prendido Benjamin (Alexandre Perreault) no banheiro do vagão.

FAUVE, de Jeremy Comte

Aos poucos descobrimos que os personagens são duas crianças explorando terrenos abandonados ou de entrada restrita. Durante a exploração o passatempo deles é um jogo de pontos, onde quem engana, ou quem é mais viril, ou quem se sai melhor, ganha um ponto. A brincadeira flerta com a ingenuidade e a inocência dos dois, como quando apostam a brincadeira do cara a cara, e quem rir primeiro perde. Mas também anda de mãos dadas com o perigo, quando Tyler atira pedras em Benjamin, que está em cima do vagão, e protege os olhos.

Ambos tentam enganar um ao outro. Até que Benjamin vê uma raposa. Chama a atenção de Tyler, mas ele já não acredita mais e prefere não olhar. A nós que estamos assistindo, não nos é revelada a imagem da raposa. A amizade entre os dois vai tomando contornos mais firmes. Sempre que precisam um do outro mutuamente se ajudam, apesar das tirações de sarro e das brincadeiras.

A amizade entre os dois vai tomando contornos mais firmes

Numa fuga, em que escapam de um caminhão, chegam a ao que parece ser um terreno de mineração, de extração de algum mineral. De um corte seco, de áudio e de imagem, vamos para um “travelling in” (zoom de movimento para dentro), que nos chama atenção para esse local. Parece um lago paradisíaco em meio a montanhas cinza. Nesse plano de apresentação do terreno não temos nenhum som dos meninos, há uma discreta ambiência sonora do local. O perigo se apresenta calmo, tranquilo, de som abafado, sem ninguém por perto. Tyler fica preso na terra movediça. Benjamin zoa ele e, quando Tyler consegue sair, Benjamin se aproxima e é empurrado. Benjamin cai no centro da terra movediça.

Acompanhamos Benjamin de costas, o que nos dá uma sensação de aflição maior. Enquanto tenta se desvenciliar da terra que o envolve, Tyler brinca, zoando ele. Nem sempre temos acesso às expressões de Benjamin, que se movimenta rápido tentando sair. As montanhas enormes e desérticas os tornam ainda mais vulneráveis. A calça cinza de Tyler o faz desaparecer enquanto corre em busca de ajuda. O esforço dele, apesar de muito grande, diante da paisagem monumental, se esvai. Os enquadramentos de grandes planos gerais nos dão a sensação de confusão e de falta de direção sobre como agir e onde pedir ajuda. Parece uma luta perdida.

Quando Tyler se dá conta de que seu amigo foi sugado pela terra cinza

As escolhas de cor, entre direção de arte e direção de fotografia, criam planos esteticamente belos. Quando Tyler se dá conta de que seu amigo foi sugado pela terra cinza, não acompanhamos sua reação emocional, acompanhamos a abstração estética do corpo dele de costas, de cor quente, entre um amarelo alaranjado, justaposto e olhando um vazio cinza azulado. Logo depois o vemos à distância: um ser diminuto em desespero diante do enorme silêncio cinza. Num “Tilt” (panorâmica vertical), Tyler é engolido pela paisagem cinza. O enquadramento narra a sensação de impotência diante de sua situação.

Na estrada uma surpresa: a raposa que Benjamin havia visto.

Segue então uma sequência de planos com Tyler caminhando por diversas partes dessas montanhas, desorientado surge em várias direções. O plano que mais me chamou atenção foi um bem próximo de seus pés: vemos seu pé entrando em quadro, ele pisa no chão cinza e sai deixando uma marca sutil. Uma senhora (Louise Bombardier) passa de carro e o convida a entrar, para levá-lo a sua casa. Quando ela consegue algumas palavras de Tyler, a trilha caminha num crescente de emoção, ele tenta articular em linguagem o que houve naquela tarde, a senhora breca o carro de sobreaviso. Na estrada uma surpresa: a raposa que Benjamin havia visto.

Fauve foi indicado a melhor curta-metragem no Oscar 2019 e ganhador do prêmio do júri do Sundance Film Festival em 2018. É o quarto curta de Jeremy, e nesse projeto ele escreveu o roteiro, dirigiu e editou.


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Filme: Marguerite, 2017 – de Marianne Farley.


[contém spoilers, link para o filme no final do post (legendas em inglês)]

Cartaz do curta-metragem “Marguerite”

Este é o segundo curta-metragem dirigido por Marianne Farley (o primeiro: “Saccage” fora gravado em 2015). Uma produção do Canadá originalmente falado em francês. Em 2019 foi indicado ao Oscar de melhor curta-metragem, mas o curta que levou a premiação foi “Skin”, de Jaime Ray Newman e Guy Nattiv. “Marguerite” nos traz a história de Marguerite (Béatrice Picard), uma senhora idosa que parece morar sozinha em sua casa, e recebe a visita diária da cuidadora Rachel (Sandrine Bisson).

A cena inicial é íntima. Rachel está lavando Marguerite. Passa água em suas costas, em seus braços. Ouvimos de perto a água passando pela costas de Marguerite e caindo de volta na banheira. A relação de cuidado que Rachel tem com Marguerite é intensa, está sempre com o olhar dirigido a ela, pergunta sobre sua saúde, passa creme, atende um ou outro pedido. E nesse processo de interação a câmera acompanha de perto Marguerite. E, com ela, percebemos os pequenos prazeres que extrai da rotina de cuidados: o toque de Rachel no banho; o ensaboar dos cabelos; as mãos que deslizam sobre a perna na intenção de hidratar a pele.

A relação de cuidado vem atrelada ao toque, à atenção dispensada e os planos, sempre próximos da pele, dos dedos, das pequenas reações do rosto de Marguerite, nos deixam ainda mais próximos das duas. Quando Rachel vai embora, Marguerite inicia um período de espera, sozinha na mesa tomando seu chá.

De repente o telefone de Rachel toca e atravessa um desses momentos de toque sutil e atencioso. Marguerite fica sabendo que Rachel tem uma namorada. A pergunta que a senhora faz: “Qual o nome dela?”. A informação a leva direto ao álbum de fotos de sua juventude, onde seus dedos tocam a face, o corpo e o nome de outra mulher: Cécile.

Agora, durante sua rotina, Marguerite fica apreensiva e em numa das despedidas rotineiras, de um impulso, pergunta: “Como é amar outra mulher?”. Rachel é pega desprevinida, mas responde: “É… é lindo”. Enquanto Marguerite passa a repensar sua juventude e as questões de sexualidade que envolviam ela e Cécile, Rachel se aproxima ainda mais de Marguerite, talvez num movimento de entender a diferença geracional entre elas, as dificuldades que enfrentara na lida com seus sentimentos…

Ao final, a relação entre as duas personagens se estreita, numa sensação de empatia e sororidade. O tempo do filme é calmo, as imagens de pele, mãos, toques e o som dos detalhes bem próximos, como se estivéssemos no mesmo ambiente de Marguerite, nos faz emocionar quando ela diz: “Eu também amei outra mulher… Nunca consegui contar a ela”.

Assista ao curta aqui: