Será que o ato de ler leva em conta a materialidade (ou virtualidade) do livro? A capa, as cores, a textura, os textos escritos nas contra-capas? Será que o sentido que extraímos do livro ou do texto literário é influenciado por essa materialidade? Ou ainda, eu e você lemos e entendemos os mesmos significados de um texto que lemos em comum? E se o leitor for uma criança ou um jovem? Quais mudanças podem existir e devem ser levadas em conta na construção de sentido para leitores em desenvolvimento e leitores maduros?
São perguntas para as quais não há respostas fáceis. Essas questões estão presentes no livro “Crítica, Teoria e Literatura Infantil” de Peter Hunt, traduzido pelo Cid Knipel, editado pela Cosac Naify em 2010. É um livro bastante revelador, que aponta para possibilidades de como encarar a crítica e a teoria literária não apenas infantil. Inclusive discute o próprio conceito de “literatura infantil” e de “literatura”.
Como evidência do problema conceitual do termo “literatura”, Peter Hunt traz alguns escritores de “literatura infantil” que não gostam de dizer que fazem “literatura”, como a Jean Ure (escritora inglesa de livros infantis [The Wizard in the Woods – 1990]), que diz ser ininteligível a literatura, apontando para o uso adultizante e, por vezes, pretensioso do termo “literatura”. Na tentativa de localizar quais características estão presentes nos textos que participam da “literatura infantil”, Hunt nos envolve na discussão sobre a linguagem e o conteúdo desses textos.
Em “A história de Pedro Coelho” (1893), de Beatrix Potter, reeditado em 2009, o autor evidencia as questões de controle evocadas pelos adultos para normatizar a “literatura infantil”. Muitos e muitas acreditam que a simplificação da linguagem, a moralidade, o politicamente correto e o apagamento de detalhes presentes na reedição desse livro de Beatrix tornam o livro mas acessível à criança. Mas Hunt chama nossa atenção para a importância da escrita mais livre na literatura infantil e cita Edward Ardizzone (ilustrador de livros infantis) : “A linguagem para crianças precisa ser expansiva e visionária, tudo o que restou foi um conjunto de clichês limitadores”.
Esse, e outros exemplos, nos levam a questionar quanto de literatura há em livros didáticos para crianças e quanto de didatismo há, ou deve haver (deve haver?), na literatura infantil. Hunt está questionando o olhar que usualmente temos diante da literatura infantil. Estamos olhando para essa literatura com um olhar adulto, moralizante e didatizante, e, então, propõe que nos dediquemos ao “único elemento que faz diferença para localizar o que é literatura infantil [que] é o seu público”. A criança.
Como fazer crítica, teoria e literatura diante de um público tão diferente do público adulto? Hunt faz algumas modificações num espectro proposto em 1983 por Robert Prtherough, em “Developing Response to Fiction”, que a seu ver pode nos ajudar a compreender como lidar com a crítica e a teoria sobre literatura infantil. Num dos extremos desses espectro estão as questões de fato do texto, as implicações que de tão claras qualquer leitor consegue identificá-las simplesmente por compartilhar a mesma língua com o texto. Ou seja, nesse extremo estão os sentidos provindos propriamente do texto. E no outro extremo, estão os significados pessoais, aquelas associações que são feitas pela unicidade de cada indivíduo e de suas experiências no mundo. Assim, indica que uma crítica está menos no caminho de referendar um significado diante de um texto, e mais no caminho de apresentar possibilidades de leitura, de sentidos e de usos do texto analisado.
Apostando na leitura como processo bastante pessoal e ambíguo, Hunt acredita que as crianças levam essa leitura pessoal ao extremo. As crianças, diante da cultura do adulto, fazem oposição a ela. Elas participam de uma contracultura, ou de uma anti-cultura, apresentam aspectos psicológicos diferentes do adulto, criam sentido através de suas experiências de vida e de outros textos com muito mais liberdade e dispõem de uma estrutura de referências completamente distinta da do adulto. As crianças são “desconstrutoras do texto” e como ele diz: “estão prontas para ler contra o texto”.
A visão de Hunt sobre a criança é de que elas não possuem os mesmos códigos que os adultos e, ao invés disso torná-las inábeis leitoras, pelo contrário, as torna tão livres a ponto de não aceitarem de pronto as formas e sentidos que lhe são dadas. No encontro com o texto, elas estão prontas para rearticular os elementos a partir de suas vontades e de suas experiências anteriores, a elas é possível brincar com esses elementos. É partindo desse entendimento que Hunt cita Catherine Belsey: “o objeto do crítico não é buscar a unidade da obra, mas a multiplicidade e diversidade de seus possíveis significados…” (Critical Practice – 1980). Pensar dessa maneira põe em cheque os cânones, as grandes reuniões de livros de “qualidade” “indiscutível”. Esses cânones têm valor para quem? Essa qualidade é entendida como “qualidade” por todes? Como? Se o sentido e o significado de um texto está sempre permeado das associações pessoais que fazemos (adultos e crianças)?
Estabelecer uma hierarquia dos melhores livros passa a não fazer sentido. (1) Defender uma crítica que exalte um livro, infantil ou não, em detrimento de outros, está mais próximo de uma defesa ideológica, e extremamente pessoal, disfarçada de concepção técnica literária, que fazer (2) uma crítica que amplie as possibilidades de sentido e de uso de um texto, sem compará-lo ou julgá-lo como ruim ou bom. Na primeira (1), você deseja convencer o leitor das qualidades do texto, e, na segunda (2), você deixa o leitor livre para decidir o que pensa e quais sentidos constrói no texto a partir de suas possibilidades e indicações de uso.
Terry Eagleton endossa, de maneira um pouco diferente, essa ideia: “As teorias literárias não devem ser censuradas por serem políticas, mas sim por serem, em seu conjunto, disfarçadas ou inconscientemente políticas; devem ser criticadas pela cegueira com que oferecem como verdades supostamente “técnicas”, “auto-evidentes”, “científicas”, “universais” que… nos mostrará estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de pessoas, em momentos específicos”. E Patrick Shannon, sobre a literatura infantil, é enfático: “se não ensinarmos as crianças a questionar nossas convicções básicas… ficaremos trancados em uma ilusão a-histórica de que o passado, o presente e o futuro, foram, são e continuarão a ser tal como entendemos nossa existência atual. ”
Hunt também defende que a criança apreende sentidos a partir da estética, não apenas das palavras. Assim, um livro com palavras difíceis ou que se utilize de várias vozes diferentes pode não ser sinônimo de falta de entendimento para a criança, que pode estar mais conectada com o contexto e com as imagens sensíveis que forma do que com uma ou outra palavra que não entende ou com algum recurso narrativo que não conheça. E, inclusive, pode ser a oportunidade para que ela conheça e se relacione com o novo.
A literatura infantil é um espaço de liberdade. “O livro não deve ser utilizado como arma” diz o autor. “Quem deve decidir? [o que pode ser publicado como literatura infantil] Quem deve censurar? [um livro infantil]” Se qualquer posição já prevê uma ideologia por detrás, não estaremos promovendo liberdade para que a criança desenvolva sua própria consciência crítica acerca do mundo. Evitar situações tensas, que evocam as dificuldades e complexidades do mundo adulto, é jogar limpo com as crianças? Ou é aliená-las? Será que ao cercear o possível estamos incentivando a criança a crescer e se desenvolver ou estamos tolhendo e deformando-as em suas próprias possibilidades?
Nessa atmosfera de liberdade, o autor dá um espaço especial ao livro ilustrado, aquele que sem palavras escritas, escreve por imagens. O grande exemplo que traz é “A grande confusão” (1981/1991) de Philippe Dupasquier. Nele, você pode acompanhar vários quartos de um hotel numa mesma página, cada quarto com suas tramas, todas acontecendo simultâneamente. A narrativa se torna múltipla e não-linear, qualidade que Hunt percebe não apenas nesse, mas no gênero mesmo do livro ilustrado, abrindo caminho para a concepção de novas maneiras de fazer narrativa. Que culmina com a extensão da literatura e da narrativa aos textos dentro das novas mídias, com jogos de RPG em que cada usuário é autor de sua própria narrativa e outros elementos externos ao jogo participam dessa narrativa.
Desde o início, Hunt parece caminhar nesse sentido de chamar atenção às narrativas pessoais e aos sentidos que cada texto pode ter para cada pessoa, seja criança, jovem ou adulto. E aí, dentro desse lugar hipermidiático “A critica, para ter algum lugar, tem de ser uma intervenção, uma interrupção e uma extensão da própria história. Isso torna o que quer que seja gerado praticamente irreconhecível como narrativa e singularmente inútil e inacessível à avaliação.” Mas então, diante da literatura infantil, como fazer críticas, criar teorias ou até escrever para esse público? O autor propõe uma crítica criancista, mais perto da criança, mais livre dos dogmas adultos sobre literatura e termina seu livro nos propondo que a crítica criancista deve se afastar de:
- Conceitos universais; Juízos comparativos; Dos pensamentos absolutos e da fé mascarada de juízo.
E pode estar mais próxima da:
- cooperação que do confronto; sintetização que da análise; leitura individual e da igualdade sem hierarquia dos textos.
E não esquece de nos lembrar:
“Você pode levar uma criança a um livro, mas não pode fazê-la pensar do mesmo modo que você. ” Peter Hunt.