Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: “Smukke mennsker” (Nothing’s all bad) de Mikkel Munch-Fals – 2010 – Denmark


atenção: contém spoilers!

Acabo de assistir o filme Smukke Mennsker, de Mikkel Munch-Fals, realizado em 2010. Não sei direito como começar a escrever sobre esse filme, ele mexeu comigo, com coisas bastante complexas. O filme começa com um prólogo que já dá o tom e o tema do filme, num quarto um homem chora enquanto uma prostituta vestida com uma roupa que lembra uma dominatrix está ajoelhada a sua frente. Aos poucos sabemos que sua tristeza não tem uma explicação muito clara, quando imaginamos sua causa estamos enganados e não esperamos (nem nós nem a prostituta) que após essa erupção sentimental o homem volte a se interessar pelo sexo de maneira tão desprendida.

É sobre sexo, sobre prazer, sobre doença, sobre relacionamentos humanos, sobre o que não sabemos direito, sobre o que não temos controle…

Um garoto muito bonito deixa de morar com o pai, passa a viver onde dá, faz um boquete num banheiro qualquer no dono de um boteco, transa com uma mulher que encontrou na noite, acaba por ganhar dinheiro com isso, no meio disso algumas drogas. Uma senhora, bastante resignada, acaba de se aposentar, numa cerimônia nada homenageadora por parte do líder da empresa, e perde o marido na mesma noite. Um homem de meia-idade tem um distúrbio sexual em que sempre que sente atração abre o zíper da calça e convida sua interlocutora para algo mais, não importa a situação nem o lugar. E por último, uma mulher que não tem um dos seios e que não consegue lidar muito bem com isso, muito por causa da reação dos outros ao seu corpo.

A senhora, depois de ficar viúva, sente-se muito solitária e até em ligações feitas para sua casa por engano ela tenta puxar um papo e conversar, mas percebe que não chegará a lugar algum esperando por uma ligação ao lado do telefone. Tenta fazer outras coisas, toma um drinque num bar, passa a frequentar um bingo e até procura alguém interessante para uma conversa num chat de telefone. É muito interessante como em cada tentativa quando ela pensa que a pessoa está se aproximando desinteressadamente, o desejo sexual do outro vem com uma força avassaladora e ela afasta na hora essa possibilidade. Até que no bar ela encontra o rapaz jovem, sem saber do seu trabalho, chegando na casa dela ela se entrega ao menino de maneira muito honesta e o menino: “Melhor acertamos o valor antes não?”, acaba com as descobertas que ela estava fazendo de si mesma nessa idade e da possibilidade de algo acontecer entre eles de maneira verdadeira.

Cartaz Smukker mennsker

O rapaz segue viagem, se droga e acaba por se encostar num beco qualquer e deitar até acordar no outro dia, mas quando abre os olhos está em outro lugar. É um casal que o deixa ficar na casa deles com a chave da casa, comida na geladeira, podendo assistir televisão e o único pedido é para que ele não os roube. O casal aparenta ser muito amável, fumam um baseado juntos, dançam, riem, comem e se divertem. Nós nos divertimos com eles também, o ambiente é tão agradável, tão acolhedor. O marido pergunta ao rapaz: “O teu pau é grande?”, aí você respira fundo e se pergunta: Como assim? Que merda é essa? O marido, cada vez mais violento, se dirige ao rapaz questionando-o sobre tudo o que foi feito por ele (não se sabe quanto tempo passou desde sua chegada à casa do casal), se não o trataram bem, se ele não pôde comer o que quis, então porque não responder à pergunta? O homem lhe bate na perna duas, três vezes. É muito diferente ser pago para executar um serviço, no caso da prostituição, de ser comprado assim como esse casal fez com o jovem rapaz. O clima deliciosamente familiar acaba de uma hora pra outra e de novo por um motivo sexual bastante complexo. O que parece é que o casal tem essa rotina, tira jovens da rua pra poder transar e espancar (porque o jovem teve algumas escoriações) ao seu bel prazer, como se tratá-los bem fosse um preço bastante razoável pra fazerem o que quiserem com eles. O garoto segue para uma produção de um filme pornô.

A mulher mais nova tem problemas na sala de aula em que leciona, as crianças fazem uma brincadeira de mau gosto com a parte de seu corpo amputada. Ela não consegue reagir muito bem, por mais que numa atitude corajosa ela desabotoe a camisa e mostre para a sala seu físico mutilado de maneira bastante honesta. Ela é filha da senhora de mais idade, seu pai, portanto, acabara de morrer e ela senta num banco no parque, onde senta também o homem de meia-idade que mencionei no início, o que parecia caminhar para uma conversa normal se transforma num atentado ao pudor por parte do homem que tira seu pênis pra fora, ereto, e a convida com um gesto a fazer algo, ela sai correndo. Mas de alguma maneira ela se sente um tanto rejeitada, numa cena linda ela pega um espelho, bastante esbaforida, e coloca-o perpendicular a outro espelho que está na sua frente fazendo com que pelo reflexo ela possa se enxergar com duas mamas perfeitamente normais. Aos poucos procura alguma maneira de acabar com essa sensação. Numa vídeolocadora de filmes pornôs ela acha uma sessão com o nome: amputados e loca, gradualmente, todos os vídeos, até que numa conversa com o atendente do caixa como participar de um filme pornô e fica claro que o seu desejo em participar do filme e em assisti-los está em conseguir perceber que é possível que alguém sinta prazer com ela nessa condição física, tanto que ela esquece de pegar o adiantamento em dinheiro para realizar o filme. Durante todos os momentos em que a acompanhamos ela está tensa, no set de filmagem ela olha para o ator ao lado de maneira desconfiada, ela não está confortável e questiona a funcionalidade de tudo aquilo pra ela, até que entra o ator que contracenará com ela, e é o jovem rapaz, que transa com ela e a faz sentir desejável novamente. Das quatro histórias que acompanhamos, talvez essa seja a única em que o sexo ajuda a resolver a sua própria situação interna.

Cena do filme Smukker Mennsker

E o homem de meia-idade é pai desse jovem rapaz, o distúrbio sexual dele, exibir o membro ereto em público, traz tantos problemas pra ele que ele acaba por fazer um corte em sua genitália, num ato desesperado de tentar resolver a sua situação, ema vez que seu psiquiatra é, como ele mesmo diz, apenas um escritor de receitas. A luta dele é bastante intensa, ele tenta se controlar, ele percebe os problemas que isso traz pra ele, no entanto é algo que ele não consegue dominar. Depois do corte, ele encontra a senhora de idade no hospital, ela havia aceitado uma carona em que o motorista tentara algo com ela, ela porém não aceitou, e ele acabou por passar mal no carro e ela teve de levá-lo ao hospital. Na sala de espera ela conversa com o homem de meia-idade e convida-o para a ceia de natal e ele, mais calmo, aceita o convite e sem avisar convida seu filho para ir também já que fora visitá-lo.

Cena do filme Smukker Mennsker

Na cena final temos a senhora que pagou o jovem prostituto, que transou com a filha dela num filme pornô, que sabe do distúrbio sexual do convidado. É muito incômodo, misturado à tensão sexual, ao não saber lidar ao ter que esconder, à vergonha, enfim, muito complexo.

Nossa sexualidade é muito complexa e os distúrbios que podemos desenvolver ou as libertações que podemos vivenciar através do sexo também o são e o filme consegue transpor essas sensações de como o sexo pode atrapalhar e ajudar, como nós temos dificuldade em lidar com os nossos desejos, com as pessoas e como só nós realmente podemos saber se isso ou aquilo nos faz mal, e onde devemos ir pra conseguir superar essas complicações que criamos, por mais estranho que pareça.

Incrível!!!!


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Curta: “Clarita”


Há um mês assisti o curta “Clarita”, também no Porta Curtas. “Clarita” é narrado pela diretora do filme que conta a história de sua própria mãe, que aos poucos foi tomada pela Doença de Alzheimer e acompanhamos junto com ela a trajetória de sua mãe. Temos acesso a imagens da mãe de Thereza Jessouroun, a diretora do curta, já num estado debilitado, se locomovendo com certa dificuldade, sem fala e um olhar perturbador que parece não saber ao certo o que está acontecendo.

A estrutura do curta mistura fotos, clipes antigos de aniversários e viagens, muito provavelmente da própria família, e filmagens atuais do estado de sua mãe e acrescenta ainda alguns momentos ficcionais em que Laura Cardoso interpreta a mãe de Thereza em alguns momentos que provavelmente não existem registrados. É muito forte a relação que a diretora estabelece entre todos esses elementos e o seu discurso, ela se questiona sobre a vida que levava com a mãe antes da doença, questiona os motivos da doença, questiona a mãe, o nível de consciência que ela tem… A filha não sabe o que se passa dentro de sua mãe, mas preza para que todos os níveis possíveis de autonomia de sua mãe sejam respeitados, tudo o que ela ainda conseguir fazer, como mastigar ou andar por exemplo, é extremamente importante e então a família não se rende aos tratamentos que poderiam torná-la totalmente inválida.

Todos nós nos questionamos sobre nossos posicionamentos perante os relacionamentos que mantemos com nossos pais, familiares e é isso o que ela faz, mas no caso dela não existe mais como tentar modificar a relação que tinham, ou se aproximarem mais, ela percebe em alguns momentos que a mãe já não participa dos momentos que ela vivencia. Um dos pontos mais fortes do filme surge quando Thereza se pergunta: “Terá ela alcançado sua realização pessoal?” (silêncio) “Nunca conversamos sobre isso…” Ela ainda questiona como em nossa própria vida não agimos como sua mãe está agora, apenas sobrevivemos, de maneira econômica, não nos aprofundamos nas relações que são importantes para nós, por medo continuamos apenas sobrevivendo.

Todos esses questionamentos partem de uma incredulidade da diretora do porque dessa doença ter vindo em sua mãe, e de como isso desestruturou as suas relações familiares.

A trilha sonora, as imagens, a fotografia dos momentos ficcionais e dos momentos documentais, as palavras que Thereza narra, é tudo muito coeso, muito forte. E é emocionante acompanhar a fragilidade da mãe da diretora e de como essa situação não tem mais volta, o que é possível fazer é cuidar dela até o final de sua vida.

Numa atuação intensa de Laura Cardoso e uma conjunção de elementos cinematográficos muito acertada esse curta propõe discussões sensíveis e evidencia de maneira delicada o que acontece quando o Alzheimer entra dentro de uma unidade familiar. É um filme muito sincero, vale a pena assistir!