Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: “The Straight Story”


O filme “The Straight Story”, do diretor David Lynch (que dirigiu a série Twin Peaks), é de 1999 e conta a história de um senhor que vive com sua filha. E depois de sofrer uma queda em sua própria casa percebe que novas limitações físicas estão deixando-o mais debilitado. Ao receber a notícia de que seu irmão Lyle não está muito bem ele decide fazer uma viagem inusitada, encara milhas e milhas em seu mini-trator-cortador-de-grama para visitar Lyle. Sua filha tenta desmotivá-lo mas rapidamente percebe e entende a situação de seu pai, para ele parece ser muito importante conseguir realizar sozinho e de sua maneira a viagem.

Do David Lynch eu assisti apenas Twin Peaks (ainda estou assistindo os episódios finais) e é interessante perceber como ele se utiliza de da linguagem cinematográfica para reforçar algumas coisas, chega a ser até exagerado o modo como ele se utiliza por exemplo dos relâmpagos que iluminam o rosto de Alvim Straight numa das cenas em que percebe algo errado pelo telefonema que sua filha atende no que parece ser a cozinha. Os clarões são muito fortes, o reflexo da chuva em seu rosto, gotas escorrendo no vidro e ao mesmo tempo no rosto de Alvim, e a câmera se aproximando evidenciam o que precisamos saber: Straight sabe que algo ruim aconteceu com seu irmão. Assim como na série Twin Peaks, em que ele usa os recursos também muito a flor da pele até beirar o não-realismo. A música do filme também se parece bastante com a música da série, uma melodia contínua e num arranjo bem próximo entre as duas trilhas sonoras.

Já no início do filme ouvimos uma queda e não sabemos direito o que aconteceu. Mais tarde quando um amigo do senhor Straight chega procurando por ele, acha-o caído na cozinha, logo depois a vizinha entra na cozinha e a filha de Straight também. A filha fica desesperada, começa a perguntar em voz alta: “O que vocês fizeram com ele?”, a vizinha corre atrás do telefone e diz que vai ligar para o número da emergência, enquanto o senhorzinho no chão está calmo e apenas pede para que lhe ajudem a levantar do chão.

Straight e sua filha fazem um trato, ele terá de visitar o médico. Depois da dificuldade de levá-lo ao médico, ele se mostra muito teimoso. A cada doença que o doutor identifica e indica um certo tratamento, Straight responde: “Nem pensar, não vou fazer”; “Não adianta mandar eu fazer esse exame”; “Não vou operar”, a caída deixou seu quadril desalinhado e portanto para se levantar ou sentar ele sente dor, mas não se rendeu as recomendações do médico, pediu outra bengala, e saiu do consultório andando com duas bengalas. A turronice dele vem da insegurança desse procedimentos médicos, porque não os conhece, não sabe como funcionam e aceitar tais procedimentos significa assumir sua própria velhice, sua dificuldade em realizar algumas tarefas, significa aceitar sua condição e isso é algo que ele não parece querer.

Depois que Straight já está na estrada, seu cortador de grama quebra e percebe que precisa de outro veículo para concretizar a viagem. Então procura um amigo, que pelo que parece é um empresário do ramo de tratores e compra um mini-trator bem parecido com o que ele tinha, mas em ótimas condições. Desde o início do filme percebemos diversas fragilidades no personagem principal e no entanto ele não desiste e o take final dessa cena é o senhorzinho montado em seu novo mini-trator passando ao lado de tratores monstruosos, fortes e imponentes e ele parece não ligar, mas para nós que estamos assistindo fica muito claro o contraste de forças e isso nos faz compadecer de Straight diante de tamanho contraste e do esforço que ele vai fazer para chegar na casa do irmão que fica a muitas milhas dali.

Straight, durante sua viagem, conhece muitas pessoas e conversa com elas, parece que o que mais importa pra ele é conversar um pouco, compartilhar o tempo. Nessas conversas ficamos sabendo por exemplo: que a filha de Straight tem um problema de fala no qual ela não consegue falar uma frase sem pausar alguma vez, como se ela fosse gaga, é um tanto sufocante esse problema dela, e essa dificuldade foi adquirida assim que ela perdeu a guarda de seus filhos por um acidente que aconteceu, ao que parece, sem culpa dela. Outro momento interessante é quando ele afirma que uma das melhores coisas da idade em que ele está é que hoje sabe separar o joio do trigo e não dá mais importância àquilo que de fato para ele não tem importância. Em outra conversa que ele tem com um senhor da mesma faixa etária sabemos que ele participou da Segunda Guerra Mundial e que por um equívoco ele acabou matando o parceiro de guerra “Kotz”, mas guardou isso consigo mesmo durante todo esse tempo.

É um road movie, com muitos planos de paisagem, com a câmera passeando por cima das plantações, os fades servem para trocar as paisagens, as vezes as imagens são quase abstratas nos padrões de plantação que enfoca. Esses planos aparecem geralmente enquanto o senhor está viajando pela estrada. Ele parece viver num outro tempo, até mesmo porque o seu mini-trator alcança uma velocidade pífia se comparado aos caminhões que passam ao seu lado buzinando. É um outro tempo, ele passa pela vida contemplando-a, está interessado na companhia das pessoas que encontra. Alvim Straight tem uma relação muito forte com o céu, o plano inicial dos créditos é um céu estrelado, e em outros momentos do filme nos deparamos com ele olhando para as estrelas, isso porque ele e seu irmão costumavam fazer isso quando eram pequenos. Durante a viagem Alvim já mantém uma relação com seu irmão, mesmo sem tê-lo encontrado ainda, isso faz com que queiramos que eles se encontrem, queremos descobrir por que essa relação com o céu. Depois de alguns apuros, como no momento em que seu trator fica desgovernado numa descida e ele quase capota, ele chega na casa de seu irmão, anda devagar até a frente da casa e chama por ele. Silêncio. Lyle! Exclama Alvim. Silêncio. Percebemos o desespero de Alvim, que parece achar que seu irmão tenha morrido, afinal foram meses de viagem. Alvim! Um grito de dentro da casa ecoa. É o irmão de Alvim. O reencontro é emocionante, não há diálogo, apenas uma pergunta, uma resposta e mais uma vez o silêncio de estarem juntos, mesmo com os problemas que tem entre si.