Felipe Lwe

"Quem tivé de sapato num sobra, num pode sobrá"


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Filme: The Ballad, de Haya Waseem – 2018


Intimidade. São apenas 3 minutos e 50 segundos de cenas da intimidade de alguns casais. The Ballad foi escrito e dirigido por Haya Wessem em 2018. Fora filmado em 65mm, formato não-convencional do cinema, que tem maior qualidade que a película 35mm, utilizada na grande maioria dos filmes antes da chegada do digital.

Com uma linda fotografia feita por Christopher Lew, o filme se desenvolve sem narrativa, sem falas, apenas com olhares e toques entre os casais. Se há influência narrativa é pela trilha sonora, criada pelo Spencer Creaghan, em que navegamos de maneira delicada, num crescente da sensação de intimidade, até umas das cenas mais bonitas do curta: Um casal embaixo dos lençois se beijando, enquanto se olham e se beijam, o lençol se levanta e balança como se um vento muito forte estivesse passando por eles.

Não é um filme documental. É uma ficção, todos os elementos da ficção estão ali: os enquandramentos bem delimitados, a fotografia certeira, locações irreverentes, os pontos de luz. O Frescor do documental vem da percepção de que não são movimentos ensaiados, são olhares íntimos, de pessoas que realmente se conhecem, e essa conexão fica clara nas imagens. Uma intimidade composta de carinhos, olhares, toque, sensualidade. Mas também composta de espaços individuais, pausas, respiração, distância.

Na silhueta vemos uma mulher comendo pedaços de um pequenino bolo. A câmera, voyeur, passeia pelos pequenos prazeres a dois, da troca de olhares penetrante até o cigarro aceso na janela depois do sexo. Como um scanner, um filete de luz perpassa procurando os casais, mas nos mostra apenas as mulheres. Um pulso de luz evidencia todos os rapazes. O curta busca esse ritmo de uma intimidade que se desvela aos poucos e que ao olhar de quem ama resta essa habilidade investigativa de decifrar os sinais e responder a altura, num beijo.


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Filme: Jesus no mundo maravilha, e outras histórias da policia brasileira. 2007 – Newton Cannito


13 anos após a estreia do filme eu estava navegando por um site de indicações filmográficas e me deparei com esse título: “Jesus no mundo maravilha”. O título me deixou interessado no mesmo momento e, então, procurei-o pra assitir. Assim como o título, o filme é chocante. Como diz Cezar Migliorin, em carta aberta ao diretor do filme: “Teu filme: Jesus no mundo maravilha, é monstruoso, com as seduções que podem ter os monstros.”

O filme é um documentário, gravado em São Paulo. E tem três núcleos dramatúrgicos. O primeiro é composto por três ex-policias, exonerados do cargo por problemas de conduta (informação essa que não temos a priori). Do segundo núcleo faz parte a mãe (Lucimar Pereira) e o pai (Eremito Santos) de um rapaz negro, morto por um policial (Paulo Betinelli). E o terceiro núcleo corresponde ao Palhaço, um rapaz que trabalha como palhaço no parque de diversões onde foi filmado o documentário, e que acabou se infiltrando nas filmagens. É a partir desses três núcleos que as relações de sentido começam a se estabelecer.

“A minha mãe de criação foi vítima de latrocínio, na época eu tinha 16 pá 17 anos. E… eu tentei algumas vezes é… visitar né o sujeito, que um deles foi preso uma época no DEIC né… Eu sinceramente, a minha intenção… eu ia matar ele lá dentro.” O filme começa com esse depoimento do ex-policial Lúcio. Na trilha uma música misteriosa junto com o som de uma tuba. As imagens que vemos são de Lúcio procurando algo, ou alguém num parque de diversões. A certo momento Lúcio aponta uma arma bastante grande em direção ao espectador. Câmera e Arma apontadas uma contra a outra, as duas se mirando.

A vocação do ex-policial surgiu do desejo de vingança: “Eu sentia o gosto da vingança…”, e o delegado que o falagrou e minou seu plano: “Por quê você não entra na polícia?”. “Comecei a caçar bandido”. As imagens beiram o onírico, um ex-policial dizendo que caça bandidos empunhando uma arma grande no parque de diversões. Mas o corte é seco. Aparece a mãe, desejosa de justiça pela morte de seu filho. Enquanto explica seu sentimento de ódio pelos policiais diante da morte de seu filho por um deles, vemos ela isolada, num fundo totalmente branco. A voz negra que clama por justiça isolada em fundo branco. O som e a imagem de uma tuba atravessa a voz da Mãe, estamos no que parece uma celebração de um quartel da policia militar. Ouvimos uma cuíca ao fundo como que brincando musicalmente com os discursos.

Jesus e Pereira são os outros dois ex-policias que compõe o núcleo. Jesus é apaixonado pela corporação. Alguns detalhes chamam nossa atenção: como o adesivo colado à porta; a exibição da arma que o acompanha no dia-a-dia; mas é sua esposa que revela sua depressão e suas tendências suicidas logo após a exoneração. Durante toda a apresentação de Jesus há imagens da corporação militar desfilando, elas atravessam a vida em família, até o seu café da manhã. A trilha muito festiva, a câmera parada, as viaturas desfilando no pátio, a filha com medo do pai não voltar ao final do expediente. Há uma contraposição confusa dos elementos. Mas não apenas confusa, há uma exposição e um choque nu, cru, dessas imagens e desses sons sobrepostos. Enquanto as crianças escorregam, com um sorriso divertido no rosto, num enorme escorregador inflável, ouvimos o depoimento da pequena: “tenho medo dele levá um tiro e morrê”.

A entrada de Jesus no parque de diversão é extremamente incômoda, enquanto ele fala sobre como o trabalho dele é tranquilo no parque, a montagem das imagens e do som interfere nesse discurso com sons característicos de desenho animado, como as cornetas que ouvimos na sequência, sons de patos quando avistamos os pedalinhos em formato de pato. O filme parece nos levar ao riso e a uma atmosfera de loucura enquanto ouvimos Jesus falando sobre o bom trabalho do ex-policial Lúcio.

“Nunca, nunca ele vai ter coragem, que a consciência dele dói. E dói muito.” O pai termina de falar e a imagem seguinte é de um brinquedo que gira, e os carrinhos passam, um depois do outro, em alta velocidade pela câmera. No som um barulho de algum brinquedo do parque empurrado ou sendo brecado, distorcido. Numa histeria obscena da produção de sentido. Lúcio diz: “O que tem que fazer com bandido?”, o ex-policial faz um gesto que popularmente atribuímos a “dar cacetada”, a montagem repete o gesto, ambos com som de tiro, e Lúcio volta “Pau neles!”. O som distorcido continua. Mais a frente, outro ex-policial, diz ser contrário a penas de 30 a 40 anos, defende que haja três instâncias: na primeira vai preso por 2 anos, na segunda se corta algum membro da pessoa, e só na terceira se dá a pena de morte. Nas imagens vemos a família Jesus comendo pedaços de carnes na churrascaria.

É de um humor pouco digerível, violento, bastante perturbador. Numa sequência que evidencia a ação violenta da polícia, com imagens documentais da TV Cultura, sobreposta ao áudio onde a mãe identifica o racismo na ação dos policiais, temos um corte seco, apenas na imagem, para o palhaço no parque de diversões, com efeitos sonoros que estimulam o lúdico. O palhaço brinca. Brinca com as declarações que acabamos de ouvir? O diretor defende que o cinismo pode ser uma figura de linguagem utilizada pelo documentário em confronto com o que ele chama de “bom mocismo” do documentário brasileiro. Acho interessante a proposta, mas o que fazer com a sensação de falta de respeito com os depoimentos? Às vezes falta de respeito com os próprios depoentes?

Equipe e ex-policias estão à vontade na cena. Lúcio comenta sobre o último bandido que “caçou”: “o último… um bitelo de um crioulo, bem servido né??… adoro né??… tenho paixão, paixão…”, [aqui fica claro o racismo em sua fala] “e um peito imenso neh”. Até este momento esse ex-policial confessa diversas posições preconceituosas, o som ajuda a tornar a cena ainda mais amarga. No entanto acontece algo diferente, o próprio diretor mostra sua posição condescendente com Lúcio e o estimula: “Lindo pra você né? Sorrindo pra você?”, num tom divertido, ao que Lúcio termina de forma crua: ” [aquele peito] me fura, me fura, me fura neh… num deu outra… bateu fofo, aquele barulinho maravilhoso, puff”.

Surge então o primeiro episódio de embate ético ao qual não consigo fugir: O diretor concorda com as ideias de Lúcio ou está se fazendo de amigo do ex-policial para retirar essas informações? E porque escolheu, durante a montagem, deixar o áudio dele estimulando Lúcio? A sensação é de estar diante de um material um tanto perverso. Qual a responsabilidade do diretor com os personagens sociais que filma?

Cezar Migliorin, em sua carta ao diretor, aponta justamente essa questão da responsabilidade do autor de documentários com a vida de seus personagens fora do filme. Newton, em entrevista, admite que quis conquistar a confiança dos policiais, também diz que ama seus personagens. Mas o efeito dessas declarações gravadas pelo filme. Elas podem ser devastadoras para esses personagens? Por mais que os desejos deles, de contar suas histórias ou de compartilhar memórias esteja sendo atendido, será que eles têm ideia da repercussão que pode haver diante dos depoimentos? Parece que existe uma diferença de poder entre o diretor e os seus personagens. Ao final da cena nos parece que todos riem.

As imagens das crianças também incomodam. Depois de apresentar discursos de violência explicita e de assassinato, depois da mãe clamar pela atenção das autoridades, entram músicas infantis. As filhas de Jesus aparecem em primeiro plano nessa tiração de sarro com os ex-policias no parque. Parece que o diretor não leva em conta a construção da imagem desse pai pra essas crianças caso elas assitam o filme, e nem delas mesmas como atrizes sociais dessa família e desse pai. “Maravilha é… Maravilha é… ter Jesus no coração”. São “tiradas”, piadas com os personagens que chegam a ser escarnecedoras. Qual o limite de um documentarista no trato com seus personagens sociais? Existe limite?

E aí chegamos ao segundo episódio de discussão ética, e que é também o terceiro núcleo dramatúrgico do filme: O palhaço. Figura que não estava no roteiro, foi colocado a pedido do próprio palhaço, que se aproximou das filmagens enquanto elas ocorriam no parque em que ele próprio trabalha. Na primeira entrevista com o palhaço o diretor faz uma pergunta direta: “Por quê eu to te entrevistando?”, “Por quê você apareceu no meu filme?”. O palhaço não sabe o que responder: “Bom, agora você me pegou meu…” “porque eu fui chamado…”, ao que o diretor rebate de pronto dizendo que ele não foi chamado e ainda diz: “Cara desse filme você não vai gostar”. O palhaço demonstra tamanha ingenuidade que mais ao fim propõe um acordo com o diretor e diz: “eu “sonho de aparecer na TV faz com que o palhaço participe do filme, e a postura ríspida do diretor se repete mais ao fim do filme, antes de tentar fechar um acordo com o diretor, diz: Ficá repetindo 50 vezes a mesma coisa igual retardado? Eu não sou retardado!” ao que o diretor responde: “ah não?”. Não parece um tratamento muito respeitoso… O que parece é que há um aproveitamento da ingenuidade dele para construir o filme.

Pereira é apresentado já na metade do filme. Ouvimos dele numa cena com as crianças: “tá todo mundo vendado?”, e logo adiante com o diretor: “eu matava por idealismo”. Esses confrontos diretos, crus, entre imagens e depoimentos desconcertantes são fortes. Nesse sentido, concordo com Migliorin quando diz que o filme é monstruoso e que tem sua sedução nisso. É estupefante ouvir e ver esses confrontos, essas sobreposições. Acho que o que mais me incomoda no filme é a liberdade do diretor. Uma liberdade que parece irrestrita. Diante da falta de preocupação com a responsabilidade sobre os depoimentos e sobre a vida dos personagens sociais pós filme, nasce uma liberdade irrestrita em reinterpretar, conjugar, colar, reorganizar, tirar pedaços, destroçar, evidenciar novos sentidos, sem limites.

O ex-policial religioso detalha como matava a sangue frio os suspeitos: “eu dizia, você tem um minuto de oração”, e nas imagens vemos os fiéis da Igreja rezando. Há uma zombaria de todos os discursos. Na cena em que advogados dos direitos humanos se sentam numa mesa para discutir com os ex-policias, o montador, como ele mesmo escreveu, monta uma cena em que pareça um blá, blá, blá vazio. É claro que a crítica aos direitos humanos é plenamente possível, um discurso que muitas vezes não consegue ajudar a própria situação dessa mãe e desse pai presentes no filme. A questão não está na crítica, mas na zombaria. Nela não se problematiza o discurso, apenas se destrói sem conseguirmos construir algo. Uma grande bagunça? A montagem de cada plano, de cada som, da postura da equipe diante das cenas parece exigir de nós uma postura “sangue no zóio”, de escárnio das posições dos depoentes. O núcleo que escapa sutilmente desse escárnio são a mãe e o pai do rapaz morto.

Talvez a trilha inicial do filme devesse ser a música do PatoFu “Hoji” (geralmente tocada ao final da música Rotomusic de Liquidificapum em 4:50) em que a Fernanda Takai canta:
“Hoje as pessoas vão morrer
Hoje as pessoas vão matar
O espírito fatal
E a psicose da morte estão no ar”
Essa música toca mais pro final do filme. Mas se tivéssemos acesso a ela antes, talvez, púdessemos nos preparar para a loucura, para a histeria da liberdade zombeteira do filme, de encarar declarações tão pujantes e àcidas imiscuidas ao divertimento da colagem circense do material audiovusal.

A montagem é bastante entrecortada, repleta de jump-cuts, inclusive alguns takes não estão sincronizados com o som direto, o que evidencia a escolha de não esconder os artifícios da elaboração do filme. Até o diretor aparece em cena sendo modelo de um bandido que sofrerá umas das “técnicas” de tortura dos ex-policias. Não estamos diante de um filme que esconde seus artifícios. A questão ética não está em não evidenciá-los. Está no tratamento que se escolheu dar aos personagens e a maneira como se cola todo o material. Talvez a cena que mais me remete a essa questão seja a do Palhaço enquanto tenta um acordo com o diretor sobre a utilização de seu nome: “Mundo Maravilha” (Palhaço Maravilha), como nome do filme e enquanto tenta um acordo vemos uma cena dos policiais abraçando o palhaço e segurando-o para fazer uma “brincadeira” de enfiar uma garrafa de água no cu do palhaço. Parece que é o que o diretor pensa em fazer com esse acordo também, enfiar no palhaço.

Ao final, no campo de paintball, depois dos ex-policiais terem encenado perseguições e tiros. Depois de Lúcio confessar ter assassinado mais de 70 pessoas como policial e ter mostrado técnicas de tortura, monta-se uma reunião entre todos os personagens nesse campo de batalhas literal. Todos se pronunciam diante da dor da Mãe, alguns tentando falar sobre justiça, outros tentando se defender a si mesmos e outros falando sobre perdão. Mas nenhuma fala é solução pra esse tribunal improvisado no campo de batalha. A cena final não quer conciliação, ela é alusão a um sistema judiciário que não tem se demonstrado capaz de resolver esses embates, e que julga do próprio lugar onde acontece o embate, sem distanciamento.

Câmera e Arma apontadas uma contra a outra no início do filme. Em dois artigos específicos que li sobre o filme os autores defendem que o diretor tenha usado como figura de linguagem o cinismo. Mas fico pensando se há a possibilidade da figura de linguagem estilística utilizada ter sido a zombaria, ou a violência. A mesma violência presente na vingança, na injustiça, talvez essa violência tenha se tornado figura de linguagem expressa pelo cinismo pra destruir, com humor, um tipo de humor específico e bastante questionável em relação a forma documental, os discursos, e gerar essa sensação de não sei o quê mal entendido e mal resolvido com que o filme acaba.

O link para ver o filme segue aqui em baixo, e mais a baixo posto os links do Blog do filme, onde você pode encontrar os artigos escritos sobre o filme. Entre eles um texto em que Jean- Claude Bernadet defende o filme e a discussão sobre suas possibilidades éticas e estilísticas.

Blog do filme:
http://jesusnomundomaravilha.blogspot.com/
Texto de Jean-Claude Bernadet sobre o filme:
http://jesusnomundomaravilha.blogspot.com/2010/02/bernardet-consagra-jesus.html
Crítica da montagem Cínica:
http://doc.ubi.pt/07/dossier_cesar_guimaraes.pdf

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